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domingo, 30 de outubro de 2016

DEUS DENTRO DE UM LABORATÓRIO




Margarida Azevedo
Sintra/Portugal

Não é a ciência que está a imiscuir-se nos recônditos quão complexos domínios da religião, é esta, pela voz dos seus mais altos representantes, que está a submeter Deus aos seus critérios. Ou porque estão contra ela e insistem em defender que Adão e Eva foram o primeiro homem e a primeira mulher, ou porque o mundo foi criado tal como está, ou porque a Arca de Noé foi o ponto de partida para uma regeneração da fauna; ou, ainda, pretendendo submeter a religião à metodologia científica, encravam a religião na procura das provas científicas da existência de Deus.

Nada mais desconforme com a fé, linha recta para ateização da religião que, perdida nas descobertas científicas, teme perder os fiéis que, nos seus problemas diários, vêem nela (ou viam) o conforto regenerador.

Com tudo isto e muito mais, não é a ciência que ridiculariza Deus, é a religião que, obsessivamente, pretende fazer Dele um objecto do cognoscível como quem estuda um animal em plena savana, ou algo experimentável como um líquido num tubo de ensaio. A religião apoia-se nas respostas da fé em detrimento da natural insuficiência de respostas, face à imensidade de questões constantes e insasiáveis, da ciência.

Numa sociedade global tudo muda. Se é certo que não ultrapassámos os textos antigos da Filosofia, menos ainda os das Escrituras, se eles são o fiel retrato da nossa natureza, prova de que rodopiamos em torno das mesmas questões existenciais, não é menos certo que o contexto é totalmente diferente.

Os nossos inimigos já não se matam pelas armas, o infiel já não é o que segue outra confissão religiosa; o exercício oral, que impunha saber o texto de cor, já não identifica o crente no cerco fechado de palavras sem vida interpretativa. Qualquer religião ou igreja tem que dialogar sobre o texto, com os seus fiéis. Para isso, torna-se imperioso que os oiça, homens e mulheres. Nunca o leigo foi tão necessário à vida da sua igreja porque ele confere um sentido vivencial ao texto, o que muito o enriquecce. Interpretar é falar de si. Porém, na expectativa de que o texto lhe traga respostas convincentes, o leitor permite-lhe, igualmente, que ele se lhe imponha; é a busca de uma resposta de alguém, muito sábio e vivente em tempos remotos, para um problema específico.

Estamos a viver outros paradigmas: ecologia, direitos humanos, direitos das mulheres, da criança, do idoso, dos animais; a crise económica, a hiper-actividade, a fadiga psicológica provocada pela tensão e a ameaça constante de perder os meios de subsistência; o sentir-se excedentário, como os idosos que são depositados em lares, que, por mais condições que tenham, são salas de espera para a morte, porque são a primeira saída definitiva das suas casas, porque quantos são arrancados à força, levados ao engano a pensar que vão dar um passeio ou visitar um amigo, para viverem em comunidades deshumanizadas, na sua maioria; são as crianças que perdem a referência da família como fonte de afecto e a base para a socialização; é a solidão, cada vez maior; o sexo como satisfação imediata e a fragilidade dos sentimentos; o terrorismo feroz e a crueldade crescente; a impaciência provocada pela neurose do esvoaçar do tapete voador.

Há que perceber que os fiéis estão vulneráveis. Fazem parte de um humano que está cada vez mais infantilizado, recente na história da criação, e à procura, perdido, de explicações. Os fiéis não querem a ciência misturada com os afectos, mas respostas cabais para a sua situação de problematicidade. É de sofrimento e de imortalidade que se ocupam. Paradoxalmente, ao procurarem na ciência as provas da existência de Deus, as religiões temem que, se não o conseguirem, acabarão por fracassar. E disso não temos dúvidas, porque um templo não é um laboratório. Contrariamente, se a ciência continuar a sua tarefa reveladora, acabará por matar Deus, mais cedo ou mais tarde, é apenas uma questão de tempo, não pelos seus próprios meios, mas porque acolitada pela religião que abdicou das suas funções, a saber, as almas.

Ora há que perceber que a fé alongou-se. Já não é apenas uma questão de acreditar em Deus, mas também no/a próprio/a homem/mulher cá neste mundo. As condições materiais de existência tornaram-se demasiado importantes, a História tornou-se, também para os cristãos, não apenas para os Judeus, a própria manifestação de Deus. É no acontecer diário, na realidade nua e crua, que encontamos este Deus que, desta forma, nos desafia. Sim, efectivamente, vivemos os nossos desafios existenciais como caminhos, mais ou menos tortuosos, mas que não deixam de ser caminhos para a vivência real da fé, que começa, imperiosa, na relação com o outro. E se assim é, cabe à religião envolver-se também com a fé em nós mesmos. Ninguém chega a Deus sem acreditar nos(as) homens/mulheres, previamente, nem Deus existe como resultado das insuficientes ou insipientes respostas da ciência. Sejam quais forem as suas respostas, as questões existenciais prevalecerão e Deus continuará inalterável.

Neste empobrecimento religioso que estamos a viver, há quem não perceba que a imensidade de leis, o encadeamento das mesmas, o cosmos não poderiam ser aleatórios. A maior prova da existência de Deus é a Vida e a Complexidade, a Precisão. Deus não cabe nas nossas cabeças, logo também não pode ser redutível aos nossos mecanismos electrónicos. Não medimos a quantidade de amor, nem a fé que sentimos; não é possível fazer uma estatística da dor ou da felicidade, não há metodologias criteriosas nem tabelas periódicas para definir quantidades de amor, pontuar o ciúme ou a inveja. Compreender não é provar, mas reconhecer a existência de um artífice. Não é possível destronar a ciência do conforto que, ao longo dos séculos, conseguiu trazer à Humanidade. Se a religião falhou, nesta área, é porque não esteve devidamente voltada para o humano, mas para a luta desigual entre as verdades das escrituras e as da ciência; apostou em traçar caminhos para Deus mediante imposição de comportamentos desfasados, impraticáveis, desconextualizados dos factores culturais dos povos. A religião não se ocupou em questões como a salvação, a paz e o amor incondicional. Esteve, contrariamente, ocupada em criar tementes, assustados, medrosos, ignorantes, impondo ideologias exclusivistas racistas e xenófobas. As evangelizações foram autênticas torturas, no meio de algumas coisas boas, mas não deixaram de o ser. Apresentaram-se perante o outro com ares de superioridade e não num propósito fraterno.

O que é que é mais importante: Saber de cor as escrituras, ou ajudar o próximo numa aflição? Procurar a santidade ou benefícios no céu, ou ter um computador e estar em contacto com o mundo, saber o que se passa a kilómetros de distância, em segundos? Viver em austeridade ascetica, ou ter meios de subsistência, filhos saudáveis, ter acessso à saúde? Quais são os maiores problemas da actualidade? Não ter casa, viver sem condições materiais, ou haver ou não provas científicas da existência de Deus? Em que medida provar a existência de Deus, cientificamente, ainda que essa ridicularia fosse possível, tráz mais felicidade que ter um emprego certo, uma máquina de lavar roupa, um automóvel, amigos?

E ainda que fossse possível, o que faríamos com as provas científicas da existência de Deus? Não temos dúvidas, as portas da curiosidade jamais seriam fechadas e outro ou outros deuses se inventariam para recomeçar tudo de novo. É que o problema não está nas provas, mas na curiosidade insaciável do ser humano, na sua incondicional vontade de transcendência, porque é isso que efectivamente o define, a curiosidade sem fim. Mas não só. O Humano carece do não-humano, o finito do infinito, o mesurável do desmesurado. Um só tem sentido mediante o outro.

Deus não cabe num telemóvel, não é captável por observatório algum. Assumirmos que somos pequeninos nem tão pouco faz parte da humildade. Trata-se tão somente de nos confrontarmos com a nossa natureza. Humano é todo aquele que olha para as estrelas e sente-se um grão de poeira, ou então, quando olha ao seu redor, se confronta com o pouco que fez no muito que há por fazer.
















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