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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

A Atitude de Kardec perante Roustaing e a evolução da ideia roustainguista no Movimento Espírita Brasileiro

Leonardo Marmo Moreira


O livro "Os Quatro Evangelhos" de J. B. Roustaing é uma obra extremamente prolixa, sendo produto de uma mistura entre ideias espíritas e conceitos católicos, além de especulações fantasiosas ou, pelo menos, que não podem ser comprovadas de nenhum modo efetivo. O caráter prolixo da obra de Roustaing foi duramente criticado por Allan Kardec na "Revista Espírita". Entretanto, como era um momento de nascimento do Espiritismo, Kardec não quis fomentar a polêmica excessivamente (semelhante ao que fizera em relação a Dom Palau e a covarde queima dos mais de 300 livros enviados para Barcelona em 1861, quando, por orientação dos Mentores Espirituais, Rivail desistiu de processar o bispo de Barcelona) para não divulgar uma obra prejudicial à evolução da compreensão doutrinária e provocar uma cisão no Movimento Espírita. 

O Codificador foi sábio e deu tempo ao tempo, na esperança de que a lucidez e o estudo comparativo e continuado dos adeptos mais sinceros do Espiritismo fossem lenta e gradualmente "separando o joio do trigo". Provavelmente por isso, apesar de ter demonstrado claramente que a obra era insustentável sob vários aspectos, tanto na "Revista Espírita" como em "A Gênese" (a ponto do próprio Roustaing considerar a análise de Kardec um "enterro de primeira classe"), não foi extremamente taxativo na exclusão da obra do meio espírita. Kardec sabia estar doente e com pouco tempo de vida física e tinha muitos problemas e preocupações com o futuro do Espiritismo. A obra de Roustaing era apenas um deles.

Um outro motivo que provavelmente levou Kardec a não ser mais excludente em relação à obra de Roustaing era o fato de que o Codificador, em sua proposta dialética, sempre defendia o debate de ideias, e como a obra de Roustaing teve pouca repercussão na França e na Europa espírita e espiritualista da época, ele deve ter considerado que seria desnecessário e até perigoso, naquele momento de início das tarefas espíritas na crosta, fomentar explicitamente uma disputa interna (por menor que fosse o grupo de adeptos de Roustaing na França), sendo que o Espiritismo já contava com muitos adversários externos ao Movimento Espírita.

No entanto, após a morte de Allan Kardec, e com o Brasil tornando-se o principal sítio do Movimento Espírita do mundo, a obra de Roustaing foi "ressuscitada", pois grande parte dos espíritas brasileiros, que ainda possuíam grande apego à Igreja católica, viram em Roustaing uma "tábua de salvação" (como explica-nos, de forma magistral, José Herculano Pires e Júlio Abreu Filho em "O Verbo e a Carne") para uma série de "apegos" doutrinários em relação ao catecismo da Igreja de Roma. 

Além disso, os roustainguistas usaram de um subterfúgio muito perspicaz, e que realmente mostrou-se eficiente, para manter a divulgação de Roustaing. É que, à época, o tríplice aspecto da Doutrina Espírita não era ainda bem compreendido e muitos daqueles que rejeitavam Roustaing não aceitavam o caráter religioso do Espiritismo. Foi um "prato cheio" para que os roustainguistas pregassem que Roustaing representava, de fato, o "Espiritismo Cristão", como o próprio advogado de Bordeaux tinha caracterizado seu legado. Assim, os ditos "científicos" seriam os "não cristãos"! Uma espécie de "gentios" ou "pagãos" do Espiritismo. Foi uma armadilha perfeita, principalmente em um país de tradições esmagadoramente católicas como o Brasil. Por mais que fosse óbvio que os postulados roustainguistas estavam em oposição às bases kardequianas, Roustaing parecia, a priori, "exaltar" Jesus! E, nesse contexto, estar contra Roustaing, seria, indiretamente, diminuir Jesus, por mais que o "Jesus roustainguista", fosse uma figura mitológica estranhíssima e distante da vista racional e profunda que Allan Kardec estabelecera. Não era racional! Era uma "fé ainda bastante católica", na qual a Santíssima Trindade voltava em novas roupagens, para, em um sincretismo místico-fantástico-religioso, incluir reencarnação e mediunidade (como se isso bastante para caracterizar uma obra como espírita (talvez para o presidente da FEB Wantuil de Freitas, famoso roustainguista, fosse realmente suficiente, pois ele fomentou a ideia de que Umbanda é Espiritismo), e ainda mais uma obra auto-intitulada arrogantemente "A Revelação da Revelação"). Foi, portanto, mais uma estratégia bem urdida para fascinar, ainda mais, os adeptos de Roustaing, de tal forma que eles achassem que realmente tinham encontrado "A Revelação da Revelação", retirando a verdade que estava encoberta "sob a capa do mistério, sob o prestígio do milagre" como o próprio texto roustainguista repete à exaustão.

Nesse contexto, o lento e gradual crescimento da Federação Espírita Brasileira como instituição referência do movimento espírita nacional, processo respaldado na autoridade moral de Bezerra de Menezes e, posteriormente, em alguns episódios polêmicos da história do Espiritismo, tais como o famigerado "Pacto Áureo", fez estragos profundos na mentalidade espírita brasileira.

De fato, a estratégia dos Espíritos que dominaram Roustaing e Madame Collignon teve um sucesso moderado na Europa, mas apresentou um sucesso estrondoso no Brasil. A abordagem "espiritólica" seduziu, e infelizmente ainda seduz, grande número de iniciantes e semi-convertidos à Doutrina Espírita, os quais ainda guardavam, como é usual, "saudades" dos mais diversos conceitos e hábitos católicos. 

Não adiantou Allan Kardec discutir o chamado "princípio da não-retrogradação" exaustivamente na "Revista Espírita", enfatizando que a reencarnação não é castigo, mas princípio promocional geral (questões 132 e 133 de "O Livro dos Espíritos"(LE) e mensagem intitulada "Necessidade da Encarnação" em "O Evangelho Segundo o Espiritismo" (ESE)) para que a necessidade da encarnação fosse compreendida. 

Também não adiantou deixar claro que os Espíritos não retrogradam em várias questões de LE. De fato, os roustainguistas acham razoável Deus punir um Espírito evoluído, praticamente ao nível de orientador de grandes comunidades, que, surpreendentemente, poderia, segundo Roustaing, rebelar-se por orgulho ou ateísmo, a ponto de um "Deus misericordioso" fazê-lo encarnar-se como uma espécie de lesma ou lagarta (os famosos "criptógamos carnudos").

Igualmente não adiantou, pelo menos para os roustainguistas, a opinião negativa dos Espíritos da "Falange do Espírito de Verdade", em "Obras Póstumas", sobre a Igreja Católica, pois Roustaing exaltava a igreja católica e sua obra (pasme!) é a "Revelação da Revelação". Os Espíritos de Kardec e Roustaing claramente discordaram! Em quem nós vamos acreditar?! Vale frisar que a "Universalidade do Ensino dos Espíritos" funciona porque Espírito evoluído não conta mentira! Ou fala profundamente, ou fala introdutoriamente, e deixa claro que não pode avançar nas informações, pois não tem o conhecimento necessário (já que os Espíritos evoluídos não são levianos) ou não têm autorização. Acreditamos nos Espíritos que publicaram com Kardec ou com Roustaing?! Aliás, qual João Evangelista é o verdadeiro?! Pois ele, pressupostamente, estaria nas duas obras discordantes.

Também não foi respeitada a opinião de Allan Kardec sobre o corpo de Jesus; a opinião de Roustaing seria mais avançada (apesar da "revelação roustainguista" (seria a quarta revelação?!) ter chegado à Terra antes de Kardec terminar a revelação "superada" dele). 

Outrossim, não adiantou Allan Kardec deixar evidente em toda a Codificação, sobretudo em ESE e em "A Gênese", que há textos bíblicos deturpados, adulterados, mal traduzidos, inventados, enxertados e que, como nos ensina Paulo de Tarso "a letra mata e o Espírito vivifica" (até Ernest Renan [vide "Vida de Jesus" de Renan e "Revisão do Cristianismo" de José Herculano Pires], já no tempo de Kardec e Roustaing, tinha essa lucidez, que faltava para o advogado de Bordeaux), pois Roustaing interpreta todos os versículos dos textos evangélicos ditos canônicos. Será que Roustaing não leu o ESE que foi publicado em 1864, no qual está inserido o capítulo "Moral Estranha" (já que "Os Quatro Evangelhos" só seriam publicados em 1866)? Seria o caso de perguntarmos aos roustainguistas: se os próprios supostos evangelistas são os Espíritos autores da obra de Roustaing, por que eles não escreveram o que de fato aconteceu, ao invés de ficarem comentando os textos que chegaram até nós, via Bíblia, como se tudo fosse literalmente verdadeiro?! Tal fundamentalismo na aceitação literal do texto bíblico seria chocante até mesmo para muitos protestantes e muçulmanos! 

Os roustainguistas, com seu apego literal à Bíblia, costumam gostar muito do Velho Testamento, semelhantemente ao que ocorre com os grupos religiosos mais limitados do Cristianismo atual. Adoram, inclusive, o "Gênesis", esquecidos de que Léon Denis (em "Cristianismo e Espiritismo"), Severino Celestino da Silva, Pastor Nehemias Marien, entre muitos outros, deixam claro que grande parte dos erros das religiões cristãs são devidos à interpretação equivocada do primeiro texto da Bíblia.

Todavia, a FEB cresceu, e por uma espécie de "tradicionalismo religioso" interno da própria instituição, e não da Doutrina Espírita propriamente considerada, manteve, e em muitos momentos acentuou, a divulgação não somente dessa obra apócrifa, como de outras, tais como aquelas de Ubaldi, entre outros livros. A Casa Espírita dita "mãe" do Movimento Espírita sustentou e ainda sustenta essa luta por seu ideal roustainguista de forma incompreensível, o que faz com que, em pleno ano de 2016, e enfrentando uma série de novos problemas no Movimento Espírita, ainda tenhamos que trabalhar para a compreensão em relação a esses problemas antigos nos nossos arraiais.

Temos vários problemas novos que passam a disputar nossa atenção com os velhos, porque, por mais que devotados espíritas tentaram, Roustaing e outros autores pseudo-espíritas continuam sobrevivendo e sendo divulgados no movimento espírita. São exemplos de novas dificuldades: a explosão editorial de obras espíritas de baixa qualidade; a ampliação dos médiuns que retiram recursos materiais direta ou indiretamente de suas obras mediúnicas; a expansão de obras supostamente mediúnicas que claramente são anímicas ou até simples produtos de auto-sugestão; a fascinação coletiva das especulações reencarnatórias sem estudos mais profundos; o crescimento da prática de cobrança monetária para a inscrição em eventos espíritas; a implementação nas casas espíritas, sem avaliação prévia e de longo prazo, de uma série de procedimentos sem suficiente respaldo doutrinário, tais como apometria e cromoterapia, etc. 

Todos esses novos problemas constituem, em conjunto, um pedido de socorro do "Movimento Espírita" para nós que temos a Doutrina Espírita nos corações. Mas, Roustaing e os problemas antigos ainda ganham divulgação no Movimento Espírita através de palestras, congressos, novos livros, blogs etc.

"Estudemos Kardec, para viver Jesus" e para salvar o Movimento Espírita de nós mesmos, hoje, amanhã e sempre, pois todos sabemos que teremos de "dar conta a Deus de nossa administração", como é ensinado no Evangelho de Lucas.

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