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domingo, 20 de dezembro de 2015

ENTRE A FÉ E A FANTASIA

Margarida Azevedo
Frequentou Universidade Nova de Lisboa
Mora em Sintra/Portugal

Se partirmos do princípio de que provar a não existência de Deus é bem mais difícil do que o contrário, verificamos que a fé em Deus não faz qualquer sentido.

Por natureza, somos levados a uma anterioridade, isto é, a questão de “Quem foi que fez”, ou “Alguém fez antes de nós” confronta-nos com a situação de que se o mundo existe é porque algo/alguém o construíu. É facto que podemos falar do princípio do mundo das mais diversas maneiras, mas somos remetidos, inevitavelmente, para a questão de que algo/alguém preside à sua feitura.

Isto significa que somos herdeiros de algo organizado, do qual fazemos parte, que nos programa para um sentido que nos é imposto. Esta constituição não é consciente, pré-consciente ou inconsciente, tal como ser bípede, ter uma temperatura de 37º ou defender a vida; ela faz parte integrante de nós, é a nossa própria natureza, o mecanismo das nossas acções. Dito de outro modo, não podemos ser outros. Contudo, somos o que somos numa eterna modificação por um mais que seja capaz de ultrapassar a nossa situação de problematicidade. Qual? A de querermos usar os nossos mecanismos em prol de uma vivência mais feliz.

Esse algo/alguém construiu algo organizado, com um propósito, um objectivo … que desconhecemos. De facto, não sabemos de onde viemos, para onde vamos; nem sabemos onde estamos. A nossa parca noção do aqui/agora assenta em cálculos baseados em linhas imaginárias que nos dão a ilusão de sabermos alguma coisa. Na falta desse imaginário o edifício dos saberes cairia por terra, a noção de estabilidde perder-se-ia, e o pior, perderíamos a identidade. O imaginário tem este papel espectacular de não nos deixar cair na perdição, no vazio. Somos, efectivaamente, seres fantasiosos. É a fantasia que nos diz que não estamos perdidos no mundo, “só” estamos ignorantes na existência.

Por outro lado,vejamos: se não conseguimos ter um conhecimento objectivo do nosso passado; se a nossa estrutura psicológica é demasiado frágil, não o suportaria, então como tê-lo face à construção do mundo? Alguém o fez, alguém preside, alguém construíu leis imutáveis, perfeitas e sábias, todo-poderosas… e já nos basta. Ora, face a isto a fé perde o sentido, porque ninguém crê numa evidência. O evidente não carece de fé. O evidente admira-se, vive-se nele, somo-lo. Podemos não ter mais evidências, podemos temê-las e considerá-las um atentado contra a ciência, mas esta temos: algo/alguém fez o mundo.

Porém, se tudo o que existe desenvolve-se, isto é, está submetido a um crescimento tal que inevitável e inefavelmente se torna outro mantendo-se substancialmente o mesmo, então precisamos da fé. Olhar para uma rocha e pensar que será um arcanjo, pela lei triunfante da modificação regeneradora e transformadora da natureza, é, efectivamente, um acto grandioso de fé. Mas mesmo assim só até certo ponto, porque nós ainda estamos muito, demasiado, próximos do barro. A vida foi-nos acrescentada, soprada pelas narinas (Gn 2:7). O ente que somos é o resultado de materialidades convergentes, o barro e o ar, que se implicam mutuamente.

Ser um arcanjo uma pedra transformada, perceber, não só que o elemento primordial é o mesmo mas que a actividade pensante é o resultado de uma força a que chamamos energia, permeável a todos os seres, é apelar a uma fé que transporta montanhas. Só que esta fé nada tem a ver, pela sua própria natureza, com o “quem” e o “porquê”, mas com mudança de lugar; a fé é um veículo invisível para o qual a densidade não é obstáculo. Este Ser é de uma perfeição que, ao construir o universo e a nós mesmos, consequentemente, deu-nos a capacidade de mudar o que está feito se soubermos dominar a natureza, antítese de destruição e descoberta da nossa força interior a que, justamente, chamamos fé; é a outra face de nós, volátil, aquilo em nos assemelhamos ao Criador (Gn 1: 26-28).

Não estamos inertes no mundo, transformamo-lo com a nossa criatividade. Sobrepondo-nos aos animais, que nada mudam, o humano ama na directa proporção em que transforma. Quando mudarmos o lugar das coisas, não mais que o nosso lugar, sermos outros pela força da fé, a própria fé perde o seu sentido. Simplificando: temos fé porque há não-fé; o resultado triunfante da fé é a sua superação. A compreensão das coisas virá depois.

Realmente, se a fé fosse do tamanho de um grão de mostarda dir-se-ia a um monte “Ergue-te e lança-te no mar,” (Mc11: 23), mas se ela não chega a essa dimensão porque impregnada de dúvida, como poderemos ultrapassar o lugar de problema para o de felicidade? Se é facto que o nosso corpo físico ainda é tão denso, se ainda vivemos dramaticamente na rocha, como des-cobrir o que a montanha oculta? A fé vocacionada para outras realidades ainda é uma quimera; possuímos apenas a fé na transformação de todas as coisas, sem que consigamos explicar nem o factor mudança nem o factor permanência das mesmas. O ser de Parménides e o de Heraclito são a nossa dor de cabeça. Nem um nem outro são objecto de fé, a fé é que existe porque não os conseguimos explicar. O algo/alguém é o móbil, a mudança ou a imobilidade são geração sua, não se engendraram a si mesmas. É Ele o não engendrado, e só Ele, o Ser que motoriza tudo o que existe.

A fé milagrisa o mundo, torna possível transformações que superam o mais comum acontecer. Na sua imemorialidade, a fé é uma construção sem tempo e sem espaço que, independentemente de tudo, se manifesta como uma voz superior residente em todas as almas. Por isso, as montanhas aguardam, pacientemente, que um Dia sejam transportadas para o mar pela força de um simples grão de mostarda.

Margarida Azevedo

Bíblia citada: Bíblia Sagrada, trad. de João Ferreira de Almeida.
Bíblias consultadas: Bíblia Sagrada, trad. de João Ferreira de Almeida.
La Bible, TOB (Traduction Oecuménique de la Bible), Biblio, Société Biblique Française/Les Éditions du Cerf, Paris,2010.

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