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domingo, 28 de outubro de 2012

A GRANDE CIVILIZAÇÃO


 Margarida Azevedo/
Mem Martins, Sintra, Portugal
  


Dos perigosos chavões e das frases feitas tão inconsequentes como eles, na tentativa obscura de minar o Espiritismo nos seus fundamentos, surge a irreflectida e maníaca afirmação de que somos hoje mais civilizados do que o éramos nas eras pretéritas.

Não fazendo abstracção do aparato tecnológico e do desenvolvimento científico, mercê do crescimento intelectual do homem, confundem salpicos civilizacionais com progresso e crescimento na área espiritual.


Poucos são os que percebem que, apesar do crescimento intelectual, chamemos-lhe assim, continuamos os mesmos, com idênticas reacções, idênticos valores, muito embora se diga que os mesmos estão em crise, numa tentativa de regresso ao passado de uma suposta época áurea em que tudo era respeito, boa convivência, assim como as demais virtudes que, muito bem envernizadas, tinham o condão de fazer de uma família infeliz um saudável exemplo para a sociedade.


Isto significa que, se por um lado o passado era tenebroso, a ignorância prevalecia e comandava o homem de tal forma que este era todo instinto (desconhecemos se até os animais o são), por outro lado surge o apelo a um passado cheio de virtudes.


Estas afirmações, apresentação de um aparelho psíquico ainda muito frágil e que, por isso, quer à viva força viver a plenitude de uma paz pura, sem quaisquer contrariedades, são o grito de um saudosismo referente a uma época que jamais existiu. Por outras palavras trata-se de um suposto paraíso perdido, paradigma da virtude suprema e no qual, porque o homem vivia em conformidade com os desígnios de Deus, tudo lhe era dado de bandeja.


Embora esta segunda hipótese tenha poucos adeptos no Espiritismo, felizmente, não deixa, porém, de estar presente aquando de abordagens aos novos ares que se respiram em termos de liberdade sexual e social, estrutura familiar, educação, etc. Há sempre no passado algo de atractivo. E isso é tão incisivo que, na ausência de explicação dos males que acontecem, remetem as causas últimas dos acontecimentos do presente para esse passado imaginário, desconhecido e vedado, Ora, isto acaba por ser o mesmo, apenas trocando-lhe as palavras. Se para uns houve um paraíso perdido, onde se vivia uma paz inconsciente e, como tal, um estado de ignorância harmonioso, para outros houve um passado infernal governado pelo inconsciente e pela ignorância desastrosa. Quer num quer noutro ninguém sabia o que fazia. Procurar uma estrutura desculpabilizadora ou culpabilizante, o efeito é idêntico. Não há ignorância virtuosa nem desastrosa, como não há uma paz para cada uma delas.


Nesta confusão, ou melhor, na aflição de procurar encontrar uma explicação plausível, e não a encontrando, remetem para o desconhecido. Este, pela sua própria natureza não se mostra porque não pode, caso contrário passaria a ser o conhecido.E aqui interroga-se: que fazer com o conhecido? Ninguém sabe. Ou melhor, provavelmente até sabe: haveria sempre um resíduo de insatisfação, uma pluralidade de interpretações que o relativizariam fazendo regressar (ou regredir) ao ponto de partida.


Uma questão se impõe com toda a pertinência: Como resolver tão difícil dilema? A resposta é simples: antigamente não podíamos ter respostas nem explicações para os nossos problemas porque ainda não tínhamos a inteligência suficientemente desenvolvida para os perceber, mas hoje, mercê da infinidade de encarnações que já temos, mais coisas nos são reveladas e, portanto, já somos capazes de perceber. Isto é, hoje merecemos mais porque somos mais inteligentes; no passado remoto Deus pouco ou nada nos revelou porque éramos tacanhos, selvagens, egoístas, instintivos, e todos os demais predicados afins. Que Deus seria esse?


Por muito que nos custe, a nossa civilização essenta em bases muito frágeis e tão comezinhas que nem damos por elas. Por outras palavras, podemos afirmar sem receio “Diz-me se comes, onde vives, com quem vives, o que fazes, que eu dir-te-ei qual a tua fé.”


O modo como estamos na fé, aquilo em que acreditamos e como acreditamos, dependem muito mais do que possuímos do que propriamente de um passado mais ou menos remoto. O aconchego do estômago dita as regras desta complexa engrenagem. As condições económicas são responsáveis pela maior ou menor disponibilidade para o divino; o sagrado é composto por uma rede elaborada de preceitos em que o factor económico impôs a riqueza dos ritos; a generosidade da dádiva tinha o peso da graça exigida.


Saber como se chegou a esses valores é um mistério, ainda que muitos afirmem que vem do além. Isso não resolve nada, porque então teríamos que perguntar ao além como chegou aos referidos valores. A resposta poderia ser espantosa e impensável, uma vez que penetrar nos confins do além implicaria possuir uma linguagem compatível com tão complexos raciocínios.


Ora, a nossa linguagem cresce e desenvolve-se à medida que o meio se torna mais elaborado, sempre material e tangível, portanto. As nossas barreiras materiais não nos permitem transpor essa fronteira, representadas fielmente pela linguagem. Logo, vivemos no mundo da nosssa discursividade.


Ainda não ultrapassámos os textos da Antiguidade. Tudo no passado continua a fazer muito sentido, um passado histórico em que, efectivamente, podemos ser os mesmos, nalguns casos, não sabemos, mas também não é isso que importa. Sejamos quem formos, o importante é que ainda estamos aquém do que muitos pensam.


Na miséria não há espiritualidade, mas a crença de que um dia poderá sair desse estado, (talvez, sempre talvez). Na miséria não há um amor por amor a Deus, mas um sentimento utilitário, pois Deus passa ao estatudo de deus mágico, poderoso, mitológico, o único que pode lutar contra os homens para lhes impor pesados castigos por se portarem mal. Noutros nem tão pouco há o desejo de castigo porque tudo lhes é indiferente.


Na miséria anseia-se por justiça imediata, apressada, exemplar. Quem tem uma esperança média de vida de trinta ou quarenta anos, no máximo, que embala filhos esqueléticos ou passeia nas ruas da lixeira não quer ouvir falar de Deus, não quer palavras belas e doces porque estão a mais, são totalmente dispensáveis porque fora do contexto; também não quer um lanchinho humilhante, em jeito de troça e oferecido ao fim da tarde pela caridadezinha. Quem é mão-de-obra disponível pelos senhores da droga e da prostituição, do tráfico humano, que acede a tudo e mais alguma coisa pois sabe que se morrer no tráfico é apenas mais um sem nome nem vida para contar, que lhe importa se Deus existe ou não, se há gente boa ou má, se há verdade ou mentira, filosofia ou ciência, arte, sabores, perfume, sorte ou azar?! Quem é privado de amor, quem nem sabe se poderá ser amado, que nunca foi olhado com desejo, singularidade, quem nunca foi descoberto na sua existência de gente e que nem tão pouco sobe ao estatuto de pessoa (conceito que o Cristianismo inaugura), que desconhece o mundo imenso dos possíveis numa vida em que tudo lhe é impossível, como representa ele as fadas, os dendes, os Espíritos, como é a floresta, qual a cor das flores ou os seus aromas? Que universo de sentido numa vida sem sentido? E depois ainda há os que dizem que são santos porque estão a queimar grandes karmas. “São os oficiais de Hitler!”, exclamam uns; “Foram Espíritos com grandes malfeitorias.”, dizem outros. E assim se vão desculpando os egoísmos, as indiferenças, o medo. Se perante os pobres a humanidade ainda não mudou de atitudes, então ainda não mudou em nada, pois é no amor ao próximo que reside o amor a Deus.


Este Deus revelado pelo Povo Judeu é um Ser libertador, de memória, um Ser todo de paz e fraternidade. Tirou o seu povo do Egipto, da terra da servidão. Imagine-se que, num golpe de benevolência, uma força superior tirava da miséria todos quantos lá estão? Que aconteceria aos outros? Nem as mais belas preces, teorias, crenças, caridades e todas as demais virtudes os protegeriam da ira da justiça. Todas as teorias seriam reduzidas a nada, cairiam na terra árida, seriam pó e nada mais. Que sabe essa gente de civilização, de progresso, de amor de que tanto enchem as bocas?


Deus não separa os homens em categorias, inteligentes ou estúpidos, primários ou desenvolvidos, sábios ou ignorantes. Este Deus de liberdade ainda não foi assimilado pelas nossas formas de fé. Estamos todos aquém da liberdade da fé porque estamos aquém do outro.


Reencarnar serve para corrigir, não para castigar, penalizar. A vida não é um tribunal de penas, mas um agradável movimento imparável cujo móbil é uma força incomensurável que não sabemos o que é e a que chamamos Vida.


Se tantos direitos se criaram, como os supramencionados, então é urgente criar o direito à não pobreza e gritar bem alto “A partir de agora jamais existirá um mísero à face da terra. Amen.”

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